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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Capitalismo americano: uma usina de pobres



Por Saul Leblon em Carta Maior

Existe um traço comum entre a rastejante recuperação norte-americana sob a batuta de Obama, a etapa aguda da crise que a antecedeu -- capitaneada por Bush Jr-- e, antes ainda, o período de apogeu que originou tudo, composto pelo desmonte regulatório nas mãos de Reagan (1981-1989), seguido da consolidação rentista, sob a batuta do democrata amigo de FHC, Bill Clinton (1993-2001). 

O fio que interliga o enredo é a persistente disseminação da pobreza na maior potencia capitalista da terra, antes, durante e depois do colapso de 2008.

A caminho do quinto ano, a crise mantém os pobres no limbo dos renegados; ao contrário do que se viu nos anos 30, subordina seu resgate à salvação das finanças, como criticou a Presidenta Dilma Rousseff, na ONU, nesta 3ª feira.

A prioridade ortodoxa justifica jogar novas cargas ao mar e ofusca a questão política central dos dias que correm: turbinado organicamente pelas finanças, o capitalismo atravessou o Rubicão despindo-se de qualquer compromisso com o presente e o futuro da sociedade; nos EUA, bem antes da crise, em pleno ciclo de expansão dos lucros e da produtividade, a engrenagem passou a cuspir regressividade e pobreza, gerando uma massa crescente de renegados. A esses, como sentenciou Mitt Romney, o mercado não tem o que dizer.

Os salários da força de trabalho nos EUA encontram-se em queda ou estagnados, desde 1999. No ano passado a renda média caiu em 18 estados, segundo o censo de 2011, divulgado agora em setembro; no anterior havia recuado em 35 das 50 unidades da federação.

Na ensolarada Califórnia, 335,7 mil pessoas atravessaram a linha pobreza em 2011, elevando o contingente de pobres do estado a 16,6% do total.

Desde 2000, a classe média americana dotada de diploma universitário, não tem reajuste salarial.

Não é um privilégio local. Também na Europa, um número crescente de famílias da chamada classe média vive o pior cenário de aperto financeiro desde a II Grande Guerra. Sem a perspectiva de um novo 'Plano Marshall', começam a afluir em direção aos parlamentos para exigir soberania popular, contra a agenda conservadora que renega os pobres para salvar os bancos.

Relatório recente da OCDE, não propriamente uma trincheira progressista — sugestivamente intitulado “Divididos estamos: porque aumenta a desigualdade--, indica que “a renda média de 10% das pessoas mais ricas equivale a nove vezes a renda dos 10% mais pobres” (nos países que integram a organização).

Nos EUA, quase 47 milhões de norte-americanos dependem do Food Stamps para comer. Em termos absolutos, é o maior contingente desde que o Census Bureau começou a elaborar as estatísticas, há 52 anos.

São as entranhas da 'turma dos 47%' pela qual Mitt Romney manifestou um rotundo descompromisso em recente jantar de arrecadação de fundos. "São pessoas', avaliou o magnata que paga 14% de imposto, contra média superior a 20% dos assalariados,"que dependem do governo, que acreditam que são vítimas, que acreditam que o governo tem a responsabilidade de cuidar delas, que acreditam que tem direito à saúde, a comida, à moradia.Que isso é um direito. E que o governo (o Estado) deveria dar isso a elas".

O ocaso dos deserdados norte-americanos não decorre apenas da peculiar visão de sociedade dos republicanos. Fosse assim, seu contingente não persistiria em alta após quatro anos de Obama e, sobretudo, sua arrancada vigorosa não seria anterior à própria crise.

O desmanche que gerou os deserdados de Romney decolou durante o reinado conservador de Ronald Wilson Reagan; propagou-se no festejado período de Bill Clinton na Casa Branca e assumiu contornos variados que esticaram a linha da exclusão até os nossos dia. Declínio do emprego, precarização do trabalho, queda dos salários reais, aumento da desigualdade, ampliação da jornada, perda de direitos e regressão sindical formam a trama dessa travessia.

É esse desmonte sólido e contínuo que emerge do estudo ' The State of Working America', uma radiografia da situação da classe trabalhadora nos EUA, publicada agora pelo Economic Policy Institute’s (http://stateofworkingamerica.org/).

A análise reúne evidencias de uma deriva social decorrente da mudança estrutural nas relações de trabalho, cuja dinâmica antecedente alinha-se muito mais entre as causas da crise, do que entre as suas consequências, ainda que faça parte delas também.

O conjunto desautoriza ilusões de retorno a uma zona de conforto que não existe mais e enfraquece a aposta política de quem continua a insistir numa solução incremental, dentro das mesmas regras do jogo. Uma parte apreciável da esquerda encontra-se congelada nesse botijão de nitrogênio histórico.

Se foi a pobreza que gerou a crise e não o seu inverso, cabe ir além das aparências na formulação de um programa que responda ao cerne do impasse --tarefa da qual Mitt Romney, compreensivelmente, se esquiva.

Os dados da edição de 2011 do " The State of Working America" cobrem a gênese do esfarelamento do trabalho no capitalismo americano. A comparação entre os anos 80, a década de 90 e o limbo atual corrobora idéia de que esta não é uma crise como outra qualquer, mas sim, um ponto de mutação do capitalismo. Razão pela qual exige mais do que esparadrapos para ser superada, como mostram os dados abaixo:

1) os ganhos salariais significativos dos anos 80 sofreram forte desgaste na década de 90;

2) o valor da hora trabalho estagnou ou caiu para 60% dos trabalhadores;

3) em 1996 a renda média familiar já era inferior a de 1986 (uma corrosão persistente);

4) uma família típica assalariada trabalhou 247 horas adicionais em 1996 para obter a mesma renda de 1989, apesar do crescimento de 8% da produtividade no período;

5) o emprego estável esfarelou; a fatia dos trabalhadores com cerca de 10 anos no mesmo emprego caiu de 41% em 1979 para 35,4% em 1996 (e certamente embicou nos anos mais recentes);

6) a desigualdade se acentuou: a renda de uma família de classe média padrão encolheu 3% entre 1989 e 1997, apesar da borbulhante expansão dos investimentos especulativos; em compensação 10% dos lares abocanharam 85% dos ganhos propiciados pela festa financeira;

7) a explosão de rentabilidade das corporações se fez, em parte, em detrimento do ganho das famílias assalariadas; se o grau de exploração tivesse se mantido dentro do padrão médio, a remuneração dos trabalhadores poderia ter ficado 7% acima do que foi;

8) a organização sindical dos trabalhadores regrediu drasticamente: de 1973 a 2011, a fatia da força de trabalho filiada a uniões e sindicatos recuou de 26,7% para 13%; esse fator explica 1/3 da desigualdade na evolução da renda entre homens e cerca de 50% das disparidades entre as mulheres;

9) o trabalho se degradou: os desempregados ao conquistarem uma nova vaga ganhavam,em média, 13% menos que no trabalho anterior; 30% dos empregos em 1997 não eram de tempo integral;

10) enquanto a fatia da renda apropriada pelos lares mais ricos (1% do total) cresceu de 37,4% para 39% entre 1989 e 1997, o universo de lares sem ingressos ou com rendimento negativos saltou de 15,5% para 18,5% no período; na população negra, 31% dos lares tinham renda zero ou negativa em 1995 e 39,9% das crianças negras viviam na pobreza então.

Repita-se: tudo isso já ocorria antes do colapso da subprime, enquanto o emprego escalava os níveis mais elevados em 30 anos, os salários, em tese, recuperavam-se e tinham tudo para ascender, uma vez que a produtividade alcançava picos na economia.

Esse paradoxo feito de exploração extrema e festa rentista só não explodiu antes, graças à válvula de escape do endividamento maciço de governos e famílias, cujo ponto de ruptura foi o esgotamento da bolha imobiliária norte-americana, espoleta da crise mundial de 2008.

Foi então que o criativo edifício de uma supremacia financeira baseada no crédito sem poupança (porque sem empregos decentes, sem distribuição de renda e sem receita fiscal compatível) veio abaixo.

Os antecedentes mostram que a tentativa de ‘limpar o rescaldo’ removendo apenas seu entulho financeiro — ou seja, salvando os bancos e arrochando ainda mais os assalariados e os pobres — aprofunda a origem da crise, em vez de enfrentar as suas causas originais.

O buraco no qual se debatem os 47% renegados por Romney é mais amplo e fundo. Controlar as finanças desreguladas é um pilar da ponte necessária para resgatá-los. Mas o retrospecto feito pelo 'The State of Working America' indica que é preciso ir além para alterar a redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas, na base do morde e assopra – -arrocho de um lado, crédito do outro.

Preservar o mesmo modelo, vitaminado agora de um arrocho no crédito, como se tenta, implica uma operação de viabilidade social em aberto.

Trata-se de abandonar a extração da mais valia relativa (exaurida no ciclo de abundancia dos anos 90) e partir para a expropriação in bruto dos assalariados.

É sobre isso que falam as ruas na Europa, e falam cada vez mais alto. Portugal ofereceu-se como boi de piranha dessa travessia gulosamente cogitada pela comitiva conservadora urbi et orbi. O governo austericida de Passos Coelho tentou confiscar 7% ao mês dos trabalhadores, que afluíram em massa às ruas e derrubaram a medida. Outros laboratórios, como é o caso da Grécia, operam experimentos da mesma envergadura com aposentados e aspirantes, cortando a pensão de uns, esticando a corda no pescoço de outros,ademais de regredir aos primórdios da Revolução Industrial, com a revogação da semana de cinco dias, do descanso semanal remunerado e a extinção do salário mínimo. A coisa vai por aí, mas a conversa está em aberto; falta a esquerda apresentar as suas propostas. A ver.